Quatrocentos milhões de quilos de queijo em minas para estabilizar mercado

No subsolo do Missouri, nos Estados Unidos, uma história curiosa da economia americana foi armazenada por décadas. Conhecido como “Government Cheese” (Queijo do Governo), esse programa surgiu para estabilizar o mercado de laticínios, levando o governo a acumular milhões de quilos de queijo. Em um momento de grande excedente, havia o equivalente a mais de dois quilos de queijo por cada cidadão americano.

A ideia inicialmente tinha boas intenções: ajudar os fazendeiros. Mas a situação virou um verdadeiro quebra-cabeça logístico. O governo encontrou-se lidando com um excesso colossal de queijo, o que gerou custos altos para armazenamento e se tornou um desafio de relações públicas. Para resolver, a solução foi distribuir o queijo ao povo, transformando um bloco processado em um ícone cultural nos Estados Unidos.

A origem da montanha de queijo, a lei de 1977 que incentivou a superprodução

A base para essa montanha de queijo começou com uma lei de 1949, mas foi o Food and Agriculture Act de 1977 que realmente abriu as comportas. O presidente Jimmy Carter, fiel à sua promessa, assinou a lei que garantiu aos produtores de laticínios preços que cobrissem os custos de produção. Na prática, isso eliminou o risco para os fazendeiros.

O incentivo para produzir mais foi claro, e a indústria não hesitou. Sem limites de produção, a oferta de leite aumentou rapidamente. Como o leite é um produto perecível, a única alternativa que o governo encontrou foi transformar o excesso em produtos mais duráveis, como queijo processado.

O pico da crise: 544 milhões de quilos de queijo em 1984

A situação se agravou. Em 1981, o estoque já superava 250 milhões de quilos. Em 1984, atingiu o pico com mais de 1,2 bilhão de libras de queijo, cerca de 544 milhões de quilos. A logística para armazenar tudo isso se tornou um pesadelo, com o governo gastando cerca de US$ 1 milhão por dia em armazenamento.

Ironicamente, o presidente, que prometeu cortar desperdícios, se tornou o responsável pelo maior estoque de queijo do mundo, um símbolo do excesso que ele se dispôs a combater.

A solução subterrânea

Sem espaço nas prateleiras tradicionais, o governo optou por uma solução inusitada: utilizar antigas minas de calcário em Springfield, Missouri, para armazenamento. Essas minas, a centenas de metros de profundidade, ofereciam um ambiente naturalmente refrigerado ideal para conservar o queijo. Porém, essa não era uma operação apenas local; havia queijo espalhado por mais de 150 armazéns em 35 estados.

Como o “Queijo do Governo” chegou à mesa dos americanos

A virada aconteceu em 1981, quando o Secretário da Agricultura, John R. Block, mostrou um bloco de queijo mofado em uma coletiva de imprensa, destacando a urgência do problema. Estimulado pela pressão pública, o presidente Ronald Reagan autorizou a distribuição do estoque através do Temporary Emergency Food Assistance Program (TEFAP).

O queijo era entregue em blocos de cinco libras (cerca de 2,3 kg), com uma embalagem genérica bem reconhecível. Para muitos lares de baixa renda, esse queijo se tornou um alimento essencial durante a recessão dos anos 80. Contudo, receber esse bloco também carregava um estigma, simbolizando a pobreza.

O legado em 2025: a política que continua e o ícone da cultura pop

Hoje, as cavernas de queijo não armazenam mais tanto quanto nos anos 80, mas a história não acabou. O governo ainda continua comprando laticínios para estabilizar o mercado, e programas como o TEFAP continuam a distribuir queijo para as populações vulneráveis em 2025.

O surpreendente legado cultural do “Government Cheese” é inegável. Ele se tornou um forte ícone da cultura pop americana, frequentemente mencionado em músicas de artistas de hip-hop, como Jay-Z e Kendrick Lamar, representando a superação da pobreza. Em 2025, quando virou título de uma série da Apple, o ‘Government Cheese’ completou sua jornada: de necessidade e estigma a uma referência ‘cool’ na cultura pop, garantindo seu lugar na memória americana.