Embraer e o avião sustentável: pioneirismo há 20 anos
Em 2004, a Embraer fez história ao certificar o Ipanema, a primeira aeronave comercial do mundo a voar com biocombustível. Essa revolução não aconteceu nas grandes rotas comerciais, mas nos céus do agronegócio brasileiro. Diferente do que muitos possam pensar, a inovação foi mais uma resposta a uma necessidade econômica do que uma simples tendência ambiental. A história do Ipanema mostra como uma solução de nicho pode ser fundamental para a descarbonização da aviação.
Embraer: do campo para a liderança de mercado
O projeto do Ipanema começou lá nos anos 60, quando o Ministério da Agricultura percebeu a necessidade de uma aeronave agrícola nacional. O foco era apoiar o crescimento de culturas como soja e cana-de-açúcar. O desenvolvimento inicial ficou a cargo do Centro Técnico de Aeronáutica (CTA), mas foi em 1969 que o projeto se transferiu para a Embraer.
Com o passar do tempo, o Ipanema foi se modernizando. Modelos como o EMB 201 e EMB 202, conhecido como “Ipanemão”, trouxeram motores mais potentes e tiveram um aumento na capacidade. Essa evolução constante fez com que o Ipanema se tornasse o verdadeiro líder do setor agrícola no Brasil, dominando cerca de 80% do mercado.
Uma revolução econômica
A transição para o etanol no início dos anos 2000 não surgiu por conta de uma preocupação ambiental. Na verdade, foi uma resposta prática a pressões econômicas. O Brasil já dispunha de uma infraestrutura sólida para a produção e distribuição do etanol, resultado do programa Pró-Álcool.
O que mais pesou nessa mudança foi o preço: a gasolina de aviação (AvGas) chegava a ser quatro vezes mais cara que o etanol. Para os operadores agrícolas, muitos dos quais eram produtores de cana, essa diferença era fundamental. Assim, eles conseguiam produzir o próprio combustível para suas aeronaves. A demanda era tão alta que muitos já estavam adaptando seus aviões de forma improvisada, sinalizando a necessidade de uma solução certificada e segura, como a que a Embraer ofereceu.
Ciente da situação, a Embraer, em parceria com o CTA e através da sua subsidiária Neiva, começou a trabalhar na certificação. Em 19 de outubro de 2004, o EMB-202A Ipanema tornou-se a primeira aeronave do mundo produzida em série e certificada para voar com 100% de biocombustível.
Os desafios e ganhos do motor a álcool
Transformar o motor Lycoming IO-540 para funcionar com etanol exigiu bastante pesquisa e engenharia. Foi necessário trocar componentes do sistema de combustível por peças que resistissem à corrosão causada pelo álcool. A equipe também recalibrou a relação ar/combustível e desenvolveu um sistema de partida a frio com um pequeno tanque auxiliar de gasolina.
Essas adaptações resultaram em ganhos impressionantes. O etanol, com sua alta octanagem, proporcionou um aumento de potência de quase 7%, elevando a potência do motor de 300 HP para 320 HP. Isso melhorou tanto a decolagem quanto as manobras da aeronave. Embora o consumo de etanol seja maior, a redução drástica no custo do combustível proporcionou uma economia operacional de até 57% e ainda eliminou a emissão de chumbo, um aditivo tóxico presente na gasolina.
Sucesso de nicho vs. aviação global
É interessante notar que o modelo do Ipanema não foi replicado na aviação comercial por um motivo técnico fundamental. Enquanto o Ipanema utiliza um motor a pistão modificado para etanol, os jatos comerciais operam com motores a turbina que necessitam de querosene de aviação (Jet A-1).
Nesse contexto, a indústria global busca um Combustível de Aviação Sustentável (SAF) que seja “drop-in”, ou seja, que seja quimicamente igual ao querosene comum e que possa ser utilizado nas frota e infraestrutura já existentes sem necessidade de adaptações. O etanol, infelizmente, não se encaixa nesse modelo. Sua adoção em larga escala seria logisticamente complexa e financeiramente inviável. Além disso, o SAF enfrenta obstáculos como um custo 2 a 5 vezes maior que o querosene convencional e uma produção que ainda representa menos de 1% da demanda global.
A base da estratégia sustentável da Embraer
O projeto do Ipanema, movido a etanol, não foi apenas uma iniciativa pontual. Ele se tornou a base da estratégia de sustentabilidade da Embraer. Esse programa serviu como um verdadeiro laboratório ao longo de anos, contribuindo com um conhecimento profundo em materiais, adaptações de motores e processos de certificação.
Graças a essa experiência, a Embraer ganhou uma vantagem competitiva de duas décadas. Essa expertise foi aplicada em voos de demonstração com jatos comerciais usando bioquerosene e, atualmente, a empresa é pioneira em testes com 100% de SAF em suas aeronaves mais modernas. Do Ipanema até os dias de hoje, a jornada da Embraer tem contribuído para a estratégia ESG da companhia, que visa operações neutras em carbono até 2040.
Curiosamente, o Ipanema, que iniciou a trajetória da Embraer nos biocombustíveis, agora serve como a plataforma para o primeiro demonstrador de propulsão 100% elétrica da empresa. O voo que ganhou asas nos campos da cana-de-açúcar do Brasil segue impulsionando a aviação rumo a um futuro sem emissões.